Milésima representação da Dama Branca
Boïeldieu na Milésima Representação da Dama Branca
As estrofes seguintes, do Sr. Méry, foram recitadas na milésima representação da Dama Branca, no teatro da Ópera Cômica, em 16 de dezembro de 1862:
A BOÏELDIEU!

Glória à peça onde canta inteira a melodia
Da obra de Boïeldieu com aplausos de alegria,
E, como no passado, ainda jovem, sem danos!
Sala cheia, a rever Paris, sempre louçã,
A Dama d’Avenel, a nobre castelã!
Dez vezes centenária, após trinta e seis anos!

É que lhe deu o autor tudo quanto um poeta
Pode dar de melhor ao que a lira interpreta,
Prodigaliza o mestre, em sucessivo ardor,
Encantos que jamais soube alguém traduzir:
O tom que faz sonhar, o tom que faz sorrir,
Do Espírito a alegria em êxtase de amor!

Sonoridade tal vem da graça suprema
Que se evola da voz, e da orquestra, e do poema,
Não conseguiu vencê-la a arte da noite então;
Porque de Boïeldieu é a mais bela vitória,
Torna o público artista e à platéia em glória
Expressa-lhe o universo a voz do coração!

Com que felicidade o mestre augusto lida
Em inspirados tons pela musa querida!
Qual rio de ouro cai do alaúde sereno!
Como raios que vêm de uma bruma escocesa!
Para tal obra, pois, a música francesa
Nada tem a temer dos Alpes ou do Reno!

Cabe-nos festejar milésimo tão nobre,
Que tão alto se eleva e de aplausos se cobre;
E... conhecemos nós os segredos do além?...
Quem sabe? aqui talvez sob este céu desfrute
Uma sombra, esta noite, e alegre nos escute,
Como um ouvinte a mais e não vemos ninguém!
Todos os espíritas devem ter notado esta última estrofe,que não poderia corresponder melhor ao seu pensamento, nem melhor exprimir a presença, em nosso meio, do Espírito dos que deixaram seus despojos carnais. Para os materialistas, é um simples jogo de imaginação do poeta, porque, em sua opinião, do homem de gênio, cuja memória se celebrava, nada restava e as palavras que lhe eram dirigidas se perdiam no vazio, sem encontrar eco. As lembranças e os pesares que deixou, para eles nada valem; ainda mais: sua vasta inteligência é mero acaso da Natureza e de sua organização. Onde, então, o seu mérito? Não o teria por haver composto suas obras-primas do que os órgãos da Barbária que os executam. Tal pensamento não tem algo de glacial, diríamos até, de profundamente imoral? E não é triste ver homens de talento e de ciência preconizá-los em seus escritos e, do alto de suas cátedras, os ensinar à juventude das escolas, buscando provar-lhes que só o nada nos espera e, conseqüentemente, que aquele que pôde ou soube subtrair-se à justiça humana, nada mais tem a recear? Esta idéia – nunca seria demais repetir – é eminentemente subversiva da ordem social e, cedo ou tarde, os povos sofrem as terríveis conseqüências de sua predominância pelo desencadeamento das paixões. Porque seria o mesmo que lhes dizer: Podeis fazer impunemente tudo o que quiserdes, contanto que sejais mais fortes. Entretanto, esta idéia – é preciso convir em louvor à Humanidade – encontra um sentimento de repulsa nas massas. Perguntamos que efeito teria produzido o poeta sobre o público se, em vez daquela imagem tão verdadeira, tão comovente e tão consoladora da presença do Espírito Boïeldieu em meio ao numeroso auditório,feliz com a aprovação à sua obra, tivesse dito: Do homem que lamentamos não resta senão o que foi para o túmulo e que se destrói dia a dia; mais alguns anos e nem mesmo o seu pó restará; mas do seu ser pensante nada resta; entrou no nada de onde saiu; não mais nos vê nem nos escuta. E vós, seu filho aqui presente, que venerais a sua memória, vossos pesares não mais o atingem; em vão o chamais em vossas preces fervorosas: não poderá vir, porque não existe mais; a tumba fechou-se para sempre sobre ele. É em vão que esperais revê-lo ao deixar a Terra, porque também entrareis no nada, como ele; em vão lhe pedireis apoio e conselhos: ele vos deixou só e bem só. Credes que ele continua a ocupar-se de vós,que está ao vosso lado, que está aqui, entre nós? Ilusão de um espírito fraco. Sois médium – dizeis – e acreditais que ele pode manifestar-se por vós! Superstição oriunda da Idade Média; efeito de vossa imaginação, que se reflete em vossos escritos.

Perguntamos: O que teria dito o auditório de semelhante quadro? É, entretanto, o ideal da incredulidade.

Certamente alguns assistentes, ao ouvirem esses versos, terão pensado: “Linda idéia! Tem fundamento!” Mas outros, em maior número, terão pensado: “Pensamento suave e consolador, que aquece o coração!” Contudo, terão acrescentado: “Se a alma de Boïeldieu está presente, como é ela? Sob que forma? É uma chama, uma centelha, um vapor, um sopro? Como vê e escuta?” É precisamente a incerteza quanto ao estado da alma que faz nascer a dúvida. Ora, o Espiritismo vem dissipar tal incerteza, dizendo: Ao morrer, Boïeldieu deixou apenas seu invólucro pesado e grosseiro; mas sua alma conservou o envoltório fluídico indestrutível; doravante, livre do entrave que o retinha ao solo, pode elevar-se e transpor o espaço. Está aqui sob sua forma humana, posto que eterizada e, se o véu que o oculta à nossa vista pudesse ser levantado, veríamos Boïeldieu, indo e vindo, ou pairando sobre a multidão; associados ao seu triunfo, estariam com ele milhares de Espíritos de corpos etéreos.

Ora, se o Espírito Boïeldieu lá está, é que se interessa pelo que lá se passa, é que se associa ao pensamento dos assistentes. Por que, então, não daria a conhecer seu próprio pensamento, se tem esse poder? É tal poder que o Espiritismo constata e explica. Seu envoltório fluídico, por mais invisível e etéreo que seja, não deixa de ser uma espécie de matéria; em vida, servia de intermediário entre a alma e o corpo; por ele transmitia sua vontade, à qual o corpo obedecia e pelo qual a alma recebia as sensações experimentadas pelo corpo; numa palavra, é o traço de união entre o Espírito e a matéria propriamente dita. Hoje, desembaraçado do seu invólucro corpóreo, associando-se por simpatia a outro Espírito encarnado, pode, de certo modo, servirse do corpo deste para exprimir seu pensamento pela palavra ou pela escrita; dito de outro modo, por via mediúnica, isto é, por um intermediário.

Assim, da sobrevivência da alma à idéia de que ela pode estar em nosso meio não há senão um passo; dessa idéia à possibilidade de se comunicar a distância não é grande. Tudo está em nos darmos conta da maneira pela qual se opera o fenômeno. Vê-se, pois, que a Doutrina Espírita, dando como verdade as relações entre os mundos visível e invisível, não avança uma coisa tão excêntrica quanto alguns o dizem, e a solidariedade que ela prova existir entre esses dois mundos é a porta que abre os horizontes do futuro.

Depois de lidas as estrofes do Sr. Méry na Sociedade Espírita de Paris, em sessão de 19 de dezembro de 1862, a Sra. Costel recebeu do Espírito Boïeldieu a seguinte comunicação:

“Sinto-me feliz em poder manifestar meu reconhecimento aos que, celebrando o velho músico, não esqueceram o homem. Um poeta – os poetas são divinos – sentiu o sopro da minha alma ainda tomada de harmonia. A música ressoava em seus versos de notável inspiração, nos quais vibrava também uma nota comovida, que fazia planar acima dos vivos a sombra feliz daquele que festejavam.

“Sim, eu assistia àquela festa comemorativa do meu talento humano e ouvia, acima dos instrumentos, uma voz, mais melodiosa que a melodia terrena, que cantava a morte despojada de seu antigo terror, aparecendo não mais como uma sombria divindade do Erebo, mas como a estrela brilhante da esperança e da ressurreição.

“A voz também cantava a união dos Espíritos com seus irmãos encarnados. Doce mistério! Fecunda associação que completa o homem e lhe restitui as almas, que em vão chamava do silêncio do túmulo.

“Precursor dos tempos, o poeta é abençoado por Deus. Cotovia matinal, ele celebra a aurora das idéias muito antes que elas surjam no horizonte. Mas eis que a revelação sagrada se espalha como uma bênção sobre todos e, como o poeta amado, sentis todos em redor de vós a presença daqueles que vossa lembrança evoca.”

Boïeldieu
R.E. , janeiro de 1863, p. 26